foto: ESPN
O dia 8 de fevereiro de 2019 está tatuado no braço de Cauan Emanuel, assim como o nome de cada um dos dez meninos que tiveram seu sonho interrompido no incêndio nos alojamentos do Ninho do Urubu, CT do Flamengo, há cinco anos. O jovem, hoje com 19 anos, foi um dos 16 sobreviventes da tragédia, que deixou marcas eternas em cada um deles – muito além de apenas a lembrança definitiva na pele.
Desde aquela data, a vida dos garotos, em geral, mudou radicalmente. Apenas três seguem com algum vínculo com o Flamengo – dois ainda como jogadores e um como funcionário. Outros 13 não tiveram o mesmo destino…
Ainda representando as cores rubro-negras, o volante Rayan Lucas estreou em 2024 no time principal, e o goleiro Francisco Dyogo Bento Alves, herói da conquista do Brasileirão sub-20 em 2023, ainda aguarda uma oportunidade. Já o ex-zagueiro Jhonata Ventura abandonou a carreira como atleta e trabalha atualmente como scout da base do Flamengo.
Outros cinco sobreviventes foram dispensados do clube carioca menos de um ano depois do incêndio. Com o passar do tempo, mais cinco seguiram o mesmo caminho.
Enquanto alguns ainda lutam em clubes menores sonhando com uma carreira de sucesso longe da Gávea, outros estão desempregados ou até mudaram de profissão.
Independentemente do caminho da carreira, todos os sobreviventes receberam uma indenização do Flamengo. Das dez famílias dos mortos, nove também chegaram a um acordo. A exceção é a do ex-goleiro Cristiano Esmério, que era um dos principais destaques daquele grupo, com passagens até por seleções brasileiras de base.
A vida de todos pode ter seguido, mas, de certa forma, aquele dia 8 ainda não acabou para os garotos. O ESPN.com.br procurou vários deles, e muitos se recusam a falar sobre o assunto.
Abaixo, a história de como estão cinco sobreviventes do incêndio no Ninho do Urubu cinco anos depois.
Rayan Lucas: ‘novo João Gomes?’
Conhecido como Quadrado, pela semelhança física com o jogador colombiano hoje na Inter de Milão, Rayan Lucas escapou sem ferimentos do incêndio. É o único sobrevivente que conseguiu chegar e jogar no time profissional do Flamengo até o momento.
Volante, era visto como um jogador promissor na base e fez algumas partidas pelo time sub-17 quando tinha apenas 15 anos. Na última temporada, foi campeão do Brasileiro sub-20 contra o Palmeiras nos pênaltis e assinou um novo contrato com o Flamengo até 2028.
“Pode parecer uma simples ação, mas representa todo um esforço meu e de meus familiares. Gostaria de agradecer ao clube por acreditar no meu potencial. Aos meus representantes por todo o suporte. E, principalmente, a minha família”, postou o atleta, que tem contrato pessoal de patrocínio com a Adidas.
Em 2024, ele disputou três partidas na Copa São Paulo de Futebol Júnior antes de ir para a equipe profissional com os outros jovens. Em uma das transmissões do torneio, foi elogiado por Paulo Nunes, ex-atacante com passagem pelo próprio Flamengo e hoje comentarista, que o comparou a João Gomes, cria rubro-negra que está na Premier League, no Wolverhampton.
“Tem um jogador que está me enchendo os olhos. O Flamengo está criando praticamente um novo João Gomes: o Rayan. O que ele joga, a força que ele tem, capacidade de cobertura, é brincadeira…”
Enquanto os principais jogadores do elenco de Tite estavam na pré-temporada nos Estados Unidos, Rayan jogou as primeiras rodadas do Campeonato Carioca. Estreou no empate com o Nova Iguaçu e foi relacionado para o clássico contra o Vasco, já com o grupo completo. Não saiu do banco de reservas, mas antes do duelo, recebeu o tradicional “trote” de Gabigol e teve o cabelo raspado.
Naydjel Callebe Boroski: dispensa por telefone e futsal
Com 14 anos em 2019, Naydjel Callebe Boroski ainda não havia sequer treinado com o resto dos garotos em campo no Flamengo. Estava alojado há quatro dias no Ninho do Urubu e foi “salvo” por um amigo que tinha asma e percebeu o incêndio antes que o quarto ficasse tomado pelas chamas e fumaça.
Depois da tragédia, o zagueiro ficou cerca de um mês na casa dos pais, no interior do Paraná, antes de retornar ao Flamengo, mas sentiu que as coisas nunca mais seriam iguais. A cabeça ainda estava no incidente, e as pernas não correspondiam em campo. “Foi difícil ter vontade de jogar bola de novo, vontade de treinar…”, disse, ao ESPN.com.br.
Em 8 janeiro de 2020, no dia de seu aniversário, Naydjel foi dispensado pelo telefone pelo clube rubro-negro. “Todo mundo ficou meio que surpreso porque a gente era deixado bastante de lado no decorrer do ano, e a gente não imaginava isso”.
O garoto conta que o telefonema foi o último contato que recebeu do Flamengo. Com a pandemia, que veio logo em seguida, ele precisou ficar uns meses sem clube antes de retomar a carreira.
Ele fez testes em Atlético-MG, Coritiba e Grêmio, mas não conseguiu ser aprovado. De volta para casa, retomou a carreira no futsal. Atualmente, Naydjel joga no time sub-20 do Copagril, em Marechal Rondon-PR, e estuda educação física.
“Meu sonho é jogar futebol, seja no campo ou no salão. Penso muito nos meninos que morreram e levo tudo isso como motivação para seguir a carreira”.
Caike Duarte Pereira da Silva: carreira segue longe do Ninho
Caike Duarte Pereira da Silva, que havia chegado poucos dias antes da tragédia, escapou da morte após pular a beliche onde estava dormindo. Apesar de não ter sofrido com problemas físicos, o jovem conta que ficou com sequelas psicológicas por um tempo.
“O começo foi muito difícil por tudo o que aconteceu, ninguém esperava aquilo, e perdi amigos. Fisicamente não sofri nada, mas mentalmente precisei passar por um trabalho psicológico. Recebi muito apoio da minha família para superar porque eles sempre estiveram presentes comigo”, disse ao ESPN.com.br.
Apenas 11 meses depois do incêndio, em janeiro de 2020, o meia foi dispensado – ao lado de outros quatro sobreviventes – pela base do Flamengo. Para piorar, ele não conseguiu se recolocar logo em seguida porque a pandemia de COVID-19 suspendeu por meses todas as atividades no futebol brasileiro.
Após ficar um período treinando por conta própria, Caike foi para a base do XV de Piracicaba, no interior de São Paulo. Ali, disputou alguns torneios, incluindo a Copa São Paulo de 2022 e 2023.
Garimpado pelo Barra Futebol Clube, de Santa Catarina, o meia virou protagonista no time sub-20 e estreou no time principal no ano passado na Copa SC. Neste ano, ele está no elenco que joga elite do Catarinense. No total, são dez partidas como profissional.
Aos 19 anos, Caike é descrito por pessoas do clube como um jogador técnico, que gosta de dar passes para os companheiros e que tem boa finalização de média e longa distância. Segundo apurou a reportagem, o jovem pode ir para um clube de Portugal em breve.
“Estou muito feliz, fui muito bem acolhido pelo clube. Estou vivendo o melhor momento da vida e consegui estrear como profissional. É seguir trabalhando pelos meus objetivos e do clube também. Espero um dia jogar a elite do Brasileiro e brilhar na Europa”, resumiu.
Cauan Emanuel Gomes Nunes: memória na pele, em busca de um clube
Durante o incêndio, Cauan Emanuel Gomes Nunes ficou ferido depois de quebrar a janela de vidro do contêiner que servia de alojamento para tentar salvar os companheiros Dyogo e Jhonata Ventura. Internado por três dias no CTI (Centro de Terapia Intensiva), ele recebeu a visita de alguns jogadores do time profissional do Flamengo. Alguns dias depois, ficou no camarote do Maracanã durante o Fla-Flu que foi disputado pelo Estadual.
Após três meses em casa, o atacante voltou bem aos treinos, mas depois de um tempo teve grandes dificuldades para retomar a motivação para jogar futebol novamente.
“Não tinha vontade de voltar, fiquei com receio. Mas tinha que correr atrás do sonho e não poderia desistir. Recebi acompanhamento psicológico do Flamengo no começo, mas eu não quis porque achava que estava tudo bem. Só que não estava”, disse ao ESPN.com.br.
Apesar de ter assinado em 2020 o primeiro contrato profissional com o Flamengo, ele deixou o time carioca no meio do ano seguinte. “Comecei a não jogar e achei que o problema era o clube, mas o problema às vezes era comigo. Isso resultou na minha saída”, afirmou.
Pouco tempo depois, Cauan foi contratado pela base do Fortaleza e voltou a morar com os pais.
Em 2023, disputou a Copa São Paulo e o Brasileirão sub-20, mas não conseguiu se firmar entre os titulares. O atacante, que deixou o “Leão do Pici” após o final do contrato, em dezembro do ano passado, está atualmente sem clube. “Foram três anos e amadureci. Estou atrás de uma oportunidade no mercado”.
Com forma de homenagem, Cauan tatuou no braço o nome dos colegas mortos – com uma estrela – e data do incêndio no Ninho. “Vai ficar para sempre na minha vida e não tem como esquecer. Peço proteção para as famílias que perderam os filhos”.
Jhonata Ventura: ferimentos abreviaram carreira
De todos os sobreviventes, Jhonata Ventura foi a vítima mais grave do incêndio. O capixaba ficou com cerca de 30% do corpo queimado e inalou muita fumaça no alojamento. Ele precisou passar por três cirurgias e ficou 64 dias internado em dois hospitais no Rio de Janeiro.
Pouco tempo depois, a família do jovem fechou um acordo para receber uma indenização do clube. Ele também assinou, em outubro de 2020, quando completou 16 anos, o primeiro contrato profissional com duração até 2023.
Enquanto isso, passou por um acompanhamento psicológico e tentou retornar aos gramados, mas a recuperação foi lenta. O agora ex-zagueiro só voltou a jogar em 2021 nas categorias de base, mas não conseguiu atingir as condições físicas ideais para competir em alto nível.
Com isso, perdeu muito espaço na equipe sub-20 e decidiu encerrar a carreira como atleta. Por meio das redes sociais, anunciou a mudança de função no final do ano passado e agradeceu ao Flamengo.
“Fica aqui minha gratidão e carinho à torcida que eu sempre fiz parte, sempre me apoiou e me deu um suporte surreal no pior momento da minha vida. Tomo essa decisão sabendo que dei meu máximo e tive o privilégio de vestir essa camisa.”
Contratado para o departamento de scout da base rubro-negra, Jonathan hoje também cursa educação física. Seu trabalho no Flamengo consiste em ajudar na captação de novos atletas e a fornecer informações de jovens que farão a transição para o elenco profissional.
Posicionamento oficial do Flamengo sobre os cinco anos do incêndio no Ninho do Urubu:
Amanhã fará cinco anos da maior tragédia da história do Flamengo. Perdemos dez jovens atletas e não podemos – nem queremos – esquecer disso. Temos que rememorar nossos jovens eternamente, a cada dez minutos de cada jogo e sempre.
Será um dia muito difícil para as famílias daqueles dez jovens atletas e isso consterna a todos nós e nossa grande torcida. É dia de lamentar e de pedir a Deus por eles. Dia de nos solidarizarmos com as famílias e dar condolências.
O clube recebeu várias consultas de muitos veículos de comunicação. Sinteticamente, o clube tem a dizer o seguinte:
Desde o trágico dia, o clube prestou toda assistência às famílias, tanto psicológica, como financeira.
Após algum tempo e independentemente de processo judicial, o clube firmou acordo com nove das dez famílias que tiveram vítimas fatais e com todos os sobreviventes. Essas famílias consideraram justos os valores da indenização e os aceitaram.
A única família que não aceitou o acordo recebe, mensalmente, uma pensão do clube, independentemente de processo judicial, e o Flamengo continua aberto para alcançar uma composição com eles, a quem muito preza.
O Flamengo tem o maior respeito e carinho pelas famílias, de modo que externamos aqui, mais uma vez, nossos mais sinceros sentimentos a todos.
SRN
ESPN