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Futebol feminino

“Presidente me chamou para ir ao motel” Em anonimato, atletas do Brasileiro Feminino respondem questões sobre preconceito; Veja

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(Molly Belle / Unsplash

Essa reportagem pode provocar gatilhos.

Maria estava no treino do próprio time quando ouviu de um superior as agressões que mudariam sua vida: “O preparador de goleiras disse que eu devia ser uma cavala sentando e que a buce***** devia ser bem branquinha.”

A atacante – de nome real preservado, assim como todas as citadas ao longo desta reportagem – reportou o ocorrido ao vice-presidente do clube, mas foi mandada esquecer.

“Era uma brincadeira”, disse o dirigente, que em seguida puniu a atleta, colocando-a para treinar em horários separados do grupo.

Quem foi ouvida?

O levantamento inédito, detalhado a seguir, ouviu 209 mulheres atletas entre clubes de todo o Brasil, participantes das três divisões do Campeonato Brasileiro Feminino – A1, A2 e A3.

E Maria, aos 28 anos, está longe de ser a única nessa história. Seu agressor? Foi promovido a supervisor menos de um mês depois.

Ao longo dos últimos meses e com a garantia do anonimato, jogadoras responderam questões sobre assédio, preconceito, discriminação e sexualidade, revelando os bastidores de histórias marcadas pela luta daquelas que buscam vencer na vida por meio do futebol no Brasil.

Levantamento inédito revela casos de assédio sexual no futebol feminino — Foto: Arte: Daniel Silva

Levantamento inédito revela casos de assédio sexual no futebol feminino — Foto: Arte: Daniel Silva

Só por ser mulher e atleta, Maria ouve ofensas das torcidas, já teve a sexualidade questionada por jogar futebol, e conta que sofreu assédio sexual, moral e também viu o mesmo acontecer com outras jogadoras.

Eu me senti oprimida e prejudicada. Tentei reportar, mas a situação só piorou, então deixei para lá e esperei o término do meu contrato (para ir embora).

— revela.

A quilômetros de distância, ainda que não se conheçam, todas essas mulheres carregam histórias marcadas por sonhos e dores.

Caroline, de 22 anos, esperava encontrar problemas para realizar o desejo de ser atleta. Só não imaginava que viveria agressões dentro de seu próprio ambiente de trabalho. A zagueira estava no treino quando o técnico do time em que jogava tentou beijar ela e outras meninas à força.

E assim como Caroline, 52,1% das 209 jogadoras ouvidas neste levantamento relatam terem sofrido algum tipo de assédio no futebol, seja sexual ou moral. Todas elas foram procuradas individualmente e sob a condição do anonimato, para responder 18 questões relacionadas à violência e discriminação no esporte.

Assédios por todos os lados

Essas meninas e mulheres relembram casos ocorridos com técnicos, árbitros, torcedores, funcionários, empresários, dirigentes e até mesmo presidentes de seus respectivos clubes.

– O presidente do meu clube me chamou para ir ao motel – conta Letícia, de 23 anos.

Já passei por clubes onde o presidente era acusado de abuso e a comissão agredia verbalmente as atletas.

— conta Olga, de 28 anos.

 — Foto: Arte: Daniel Silva

— Foto: Arte: Daniel Silva

Ao delimitar as ocorrências para casos específicos de assédio sexual, o número de respostas positivas segue alto: 26,8% delas dizem que sim, sofreram, e 4,8% dizem que “acham que sim”. Outras 15,8% “acham que não”. Ou seja, só pouco mais da metade (52,6%) são taxativas para dizer que não vivenciaram algo do tipo.

A possibilidade de responder a pergunta com o “acho que sim” ou “acho que não” existe porque muitas mulheres podem ter uma percepção da palavra “assédio” aplicada somente às condutas mais graves, como de estupro, por exemplo, mas quando ouvem uma explicação sobre a abrangência do termo, reconhecem episódios vividos ao longo da carreira.

Cada uma tem seu tempo, e pode demorar para entender o que sofreu.

Depois de o jogo acabar, enquanto o treinador falava, o auxiliar passava a mão na bunda das atletas.

— lembra Catharina, de 23 anos, que também sofreu assédio de um presidente, enquanto tentava se transferir a outra equipe.

A importunação sexual e o assédio sexual são crimes tipificados nos artigos 215-A e 216-A do Código Penal no Brasil, no capítulo sobre crimes contra a dignidade sexual. No primeiro caso, a pena prevista é de reclusão entre um a cinco anos. No assédio sexual, é de detenção de um a dois anos, que pode ser aumentada em até um terço se a vítima for menor de 18 anos.

Trecho do Código Penal Brasileiro, com detalhes sobre os crimes de assédio sexual e importunação — Foto: Reprodução / Código Penal

Trecho do Código Penal Brasileiro, com detalhes sobre os crimes de assédio sexual e importunação — Foto: Reprodução / Código Penal

As histórias de Maria, Carol e Catharina aconteceram dentro de campo, mas outros relatos vão além. Os casos de assédio estão presentes na concentração, nos hotéis, em treinos, viagens, redes sociais, ônibus, alojamentos, nas ruas e até em confraternizações dos times.

Todos esses locais são citados por elas ao longo do levantamento.

Tive um preparador físico que fazia exercícios em que ele tocava as partes íntimas das atletas e as colocava em posições desconfortáveis com a desculpa de que era treino – conta Larissa, de apenas 20 anos, que denunciou o caso para a diretoria e viu o profissional ser afastado do cargo.

 — Foto: Arte: Daniel Silva

— Foto: Arte: Daniel Silva

Os autores dessas agressões são homens que trabalham direta ou indiretamente com as atletas, incluindo até mesmo profissionais que deveriam ser responsáveis pelos cuidados com a carreira delas.

Já tive um empresário que pedia nudes (fotos íntimas) em troca de melhores negociações com clubes.

— confessa Anne, de 29 anos.

Anne não só viveu, como também viu acontecer histórias semelhantes com companheiras de time. Ela conta que uma colega sofreu assédio moral e sexual do próprio treinador, mas conseguiu se afastar e mudar de clube. O mesmo se passou com Giovanna, de 30 anos, que viu o técnico de seu time “fazer massagens indevidas” em uma atleta e sair ileso na época.

Elas representam 37,3% das entrevistadas: são atletas que contam ter visto casos de assédio com companheiras de time, seja por “elogios” de conotação sexual, mensagens indevidas, gestos pornográficos ou mesmo tentativas de contato físico do agressor com a atleta.

 — Foto: Arte: Daniel Silva

— Foto: Arte: Daniel Silva

Clara, por exemplo, estava no quarto da concentração com outra jogadora quando o treinador entrou, sentou na cama e elogiou a “marquinha de biquíni” da colega.

Ele passou a mão na coxa dela, arrumamos uma desculpa e saímos do quarto, que era nosso. Quando voltamos, ele estava dormindo na cama. Chegamos com mais meninas fazendo bagunça, e ele desconfortável saiu.

— lembra Clara.

Os relatos de assédio sexual, por si só, são chocantes. Mas essas agressões representam apenas uma parte do problema enfrentado pelas mulheres no futebol. Outro comportamento abusivo é ainda mais recorrente: o assédio moral.

Quase metade das atletas (47,8%) dizem que sofreram, seja por ofensas, pressão indevida ou mesmo xingamentos vindos de profissionais no futebol. O assédio moral, aliás, está previsto como crime no artigo 146 do Código Penal, com detenção por até dois anos se ocorrido no ambiente de trabalho.

Algo que se tornou constante no futebol feminino.

– Uma atleta do nosso time levou um tapa e foi puxada pela camisa por alegarem que ela estava se escondendo do jogo – conta Talita, lembrando da sensação paralisante provocada pela cena.

Meu técnico gritava e sempre questionava nossa qualidade. Dizia constantemente que se fossemos homens, já estaria batendo na gente.

— revela Fernanda.

Sempre um homem

Apesar da recorrência, poucos agressores são responsabilizados pelos próprios atos.

No clube em que Arya jogou, por exemplo, um fotógrafo fez comentários e gestos de sexo oral para uma atleta que estava comendo uma banana após o treino. Denunciado, foi mandado embora e depois de três meses voltou. “Está lá até hoje”, conta Arya.

"Meu técnico gritava e sempre questionava nossa qualidade." — Foto: Arte: Daniel Silva

“Meu técnico gritava e sempre questionava nossa qualidade.” — Foto: Arte: Daniel Silva

Dos 113 casos relatados pelas atletas, apenas 17 homens – porque todos foram homens – sofreram consequências.

Um deles, aliás, sofreu essas consequências graças à denúncia encabeçada por Marília, de 18 anos, que deu apoio a jogadoras de outro time, quando elas não sabiam mais o que fazer. Ela é um exemplo de que as atletas que tiveram melhores respostas foram aquelas que fizeram denúncias conjuntas, de mais de uma jogadora sobre a mesma pessoa.

– Um treinador do time rival estava na mesma escola em que estávamos alojadas e ele assediava as atletas. Descobrimos, levamos para a comissão e ele foi levado à delegacia e teve o afastamento do time que comandava – conta Marília.

O que aconteceu com os agressores?

  • Retirados do cargo: 2
  • Demitidos: 6
  • Denunciados e responderam processo: 6
  • Presos: 3

Marília, contudo, representa uma exceção no futebol feminino, porque são poucas as meninas e mulheres que conseguem transformar os episódios em denúncias. Apenas 14,7% das entrevistadas relataram terem denunciado os casos, enquanto 85,3% delas dizem que não denunciaram o que viveram ou viram.

São agressões silenciadas pelo medo, insegurança e desconforto, de atletas que por vezes não veem com quem compartilhar suas histórias.

– Por ser um meio masculino, eles sempre se defendem e acabam mandando embora quem está tentando fazer o certo – conta Catarina, de 25 anos.

– Faltam mulheres nas comissões. Nos treinos geralmente são só homens, psicólogo é homem e era importante que fosse uma mulher, fisioterapeuta também, porque tem meninas que não se sentem à vontade. Às vezes acontece algo, e a menina não tem com quem falar – completa Arya, que viu o episódio do fotógrafo e tem mais tempo de experiência no futebol.

Nas ocasiões em que as atletas se negam e reagem às agressões, são por vezes recebidas com ameaças.

– Meu treinador chamava uma atleta no quarto e, se ela se recusasse, ele ameaçava contar para a família dela que ela era bissexual – conta Gabriela, que sofreu agressões verbais e físicas, e enfrentou até falta de alimentos no futebol.

"Ele passou a mão na coxa dela, arrumamos uma desculpa e saímos do quarto." — Foto: Arte: Daniel Silva

“Ele passou a mão na coxa dela, arrumamos uma desculpa e saímos do quarto.” — Foto: Arte: Daniel Silva

Repercussão internacional

O tema do assédio no futebol feminino ganhou espaço na mídia nacional ainda em 2022, mas por casos ocorridos nos Estados Unidos.

Começou com uma reportagem do The Athletic, que relatava alegações de assédio sexual e agressão física do técnico Paul Riley, do Portland Thorns. E em seguida uma investigação revelou que o abuso e o assédio, verbal, emocional e sexual, se tornaram sistemáticos no futebol feminino do país.

Riley e outros três treinadores nos Estados Unidos – Christy Holly, Rory Dames e Richie Burk – foram banidos por assédio e abuso depois dessa investigação.

Paul Riley, técnico demitido do North Carolina Courage após escândalo de assédio sexual — Foto: STREETER LECKA / AFP

Paul Riley, técnico demitido do North Carolina Courage após escândalo de assédio sexual — Foto: STREETER LECKA / AFP

No Brasil, a temática ganhou espaço em setembro de 2023 quando atletas do Santos entregaram à diretoria uma série de cartas acusando o técnico Kleiton Lima de assédio moral e sexual.

O treinador entregou o cargo no mesmo dia, horas antes da história se tornar pública. Ele nega as acusações e em janeiro de 2024 foi à polícia pedir abertura de inquérito contra uma jogadora, alegando ser vítima de calúnia. Kleiton havia entrado com um processo na Justiça de São Paulo pelo mesmo motivo, mas a entidade determinou o arquivamento da ação.

Relatos das jogadoras do Santos contra o técnico Kleiton Lima - Carta 11 — Foto: Reprodução

Relatos das jogadoras do Santos contra o técnico Kleiton Lima – Carta 11 — Foto: Reprodução

Ao mesmo tempo, no Brasil, somente agora há menção pela primeira vez ao termo “abuso sexual” em uma legislação esportiva no país. A nova Lei Geral do Esporte, sancionada com cerca de 200 artigos, detalha as características do “contrato de formação esportiva” para atletas e fala sobre as obrigações das organizações formadoras, exigindo que:

  • l) ofereça programa contínuo de orientação e suporte contra o abuso e à exploração sexual;
  • n) institua ouvidoria para receber denúncia de maus-tratos a crianças e adolescentes e de exploração sexual deles.
Sessão desta terça-feira do Senado aprovou a criação da Lei Geral do Esporte — Foto: Roque de Sá/Agência Senado

Sessão desta terça-feira do Senado aprovou a criação da Lei Geral do Esporte — Foto: Roque de Sá/Agência Senado

Os problemas, contudo, não estão restritos a crianças e adolescentes, ou mesmo aos casos de assédio sexual e moral. A própria Maria, aos 28 anos, antes mesmo do assédio do preparador de goleiras, também vivenciou xingamentos, viu acontecer com outras atletas e ouviu ofensas de torcidas no estádio, em viagens e nas redes sociais.

Os casos de assédio, portanto, são a manifestação mais grave de histórias marcadas pelo preconceito e pela discriminação, além da própria dificuldade de estrutura – presente principalmente em clubes das segunda e terceira divisões, além de alguns da primeira, como aconteceu com Ceará e Real Ariquemes no ano passado.

O Real, inclusive, com protesto de atletas por salários atrasados e falta de alimentação apropriada. O Ceará, mais uma vez, fechou o departamento alegando redução de custos e desistiu de participar do Brasileirão em 2024.

Meninas do Real Ariquemes protestam em nota conjunta nas redes sociais — Foto: Redes Sociais

Meninas do Real Ariquemes protestam em nota conjunta nas redes sociais — Foto: Redes Sociais

Neste levantamento, 59,3% das atletas contam que ainda conciliam a profissão no futebol com outra ocupação, como o estudo ou um segundo emprego. Falta apoio em casa e até mesmo nos estádios, uma vez que 28,7% delas dizem que sofrem ou sofreram preconceito de familiares e amigos, e 35,9% revelam que se sentiram ofendidas pelas próprias torcidas dos clubes que defendem.

Não bastassem os problemas estruturais, a escolha da profissão – em um meio predominado por homens – pressupõe também a sexualidade dessas mulheres: 76,1% das entrevistadas contam que tiveram a orientação sexual questionada pelo simples fato de jogarem futebol.

Colocando em outra proporção, isso significa que em um time de futebol pelo menos oito de 11 jogadoras já sofreram esse tipo de agressão.

“Maria macho.”

“Só tem sapatão.”

“Futebol é para homem.”

Essas são algumas das frases que elas mais costumam ouvir, conforme relatam, e que acontecem na concentração, no hotel, em viagens, entre a família, amigos, escola, nas ruas. Agressões que chegam ao extremo de ameaças do “estupro de correção”, que é o crime da tentativa de controlar o comportamento social ou sexual de uma pessoa.

– Sempre falam que eu gosto de mulher porque eu não provei um homem de verdade – conta Letícia, de 26 anos, que vivenciou comentários do tipo nas redes sociais e nos estádios.

Assim como Letícia, Eva sempre carregou consigo o sonho de ser atleta. Aos 35 anos, diz que evitou denúncias porque precisava do trabalho, mas agora – formada – não está mais “refém de clubes”.

Enquanto buscava o sonho, recebeu convites para sair com treinadores, dormir no mesmo quarto, ter encontros a sós no alojamento, e precisou lidar sozinha com as agressões – para “desviar”, como ela conta, das indevidas propostas.

Eva representa uma entre as centenas de mulheres que escolheram compartilhar a vida nesta reportagem. Que, pela primeira vez, se sentiram seguras para contar a própria história. De mulheres que veem o assédio moral, sexual e a discriminação incrustados na sociedade, refletidos no futebol e normalizado nas cobranças abusivas e limites ultrapassados nos bastidores dos vestiários.

Eva, assim como outras tantas, espera que os dados ajudem a mudar esse cenário. Para que cada vez mais meninas e mulheres tenham voz, segurança e respeito – tudo àquilo que têm direito, e não recebem.

“Não podemos ter medo de viver onde deveria ser nossa casa.”

GE.

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